sexta-feira, 27 de maio de 2011


entrevista da professora maria ines de almeida

http://www.centopeia.net/entrevista/maria_ines.php

Maria Inês de Almeida e o Livro Indígena
por Sérgio Medeiros

O que é exatamente a literatura nativa da América? Que livros o leitor de língua portuguesa deveria ler para ter acesso ao que de melhor essa literatura já produziu? O livro é realmente importante para as populações indígenas do Brasil? Essas e outras questões são discutidas nesta entrevista por Maria Inês de Almeida, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, onde coordena o Núcleo de Pesquisas Transdisciplinares Literaterras: escrita, leitura, traduções.

Florianópolis, 30 de maio de 2009

1. Qual ou quais livros da literatura indígena você recomenda, neste momento, aos leitores de língua portuguesa?

R: Dois deles, entre os livros de autoria indígena publicados nos últimos anos, são pioneiros no sentido de apontarem um caminho para os povos que pretendem dar a conhecer sua mitologia: Antes o mundo não existia (dos Desana) e Shenipabu Miyui (dos Kaxinawá). Dentre os clássicos ameríndios, sem dúvida, temos o Popol Vuh (agora felizmente traduzido por você para o português). Um outro livro importante, por mostrar a força das artes plásticas na composição do livro indígena, é O livro das árvores (dos Ticuna).
Além destes, temos também o Casa de Transformação - Origem da vida ritual Utapinopona Tuyuka (dos Tuyuca, publicado pelo ISA), o Mitologia Sagrada dos Tukano Hausirõ Porá e o Isâ Yekisimia Masîke,- O conhecimento dos nossos antepassados, uma narrativa Oyé (dos Tukano) e, ainda do Rio Negro, o Bueri Kãadiri Maririye - Os ensinamentos que não se esquecem (dos Desana). Toda a coleção “Narradores do Rio Negro”, organizada pela FOIRN – Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, se encontra à venda e é interessante.

Claro que temos muitos títulos publicados no Brasil e cada vez mais o interesse do público em conhecê-los, mas veja que estou recomendando apenas livros de autoria coletiva (escritos em sintonia com a tradição oral), que podem ser adquiridos pelos leitores e que estão em língua portuguesa. Em geral, a literatura indígena tem sido editada no contexto da implantação da educação escolar nas aldeias, ou seja, é uma literatura financiada pelo governo, de produção/circulação restrita e não entra no circuito comercial. Além disso, grande parte está exclusivamente em língua indígena, minoritária (apenas na região amazônica, do Rio Negro, há línguas de maior circulação, como o Nheengatu ou o Baniwa).


2. A narrativa oral é a origem da narrativa escrita, no contexto da literatura indígena contemporânea? Ou seriam práticas distintas, que apenas coexistem?

R: Pelo que tenho observado, são práticas análogas em muitos aspectos, até porque realmente a maioria das narrativas até agora escritas foi contada pelos mais velhos. A escrita, a tradução e a edição, pelos jovens índios, destas narrativas, obedecem a princípios que são comuns em suas tradições orais: a autoria coletiva, por exemplo. A figura do autor individual dá lugar a uma espécie de marca (griffe), que é a da etnia (daí a maioria dos livros ser do “povo Pataxó”, dos “professores Ticuna”, etc). Outra característica comum: a constante reformulação das histórias: a cada vez que um texto é escrito e publicado, surge a necessidade de se “melhorar a história”, ou seja, sempre aparece alguém que saberia contá-la melhor, que tem melhor lembrança, e, portanto, há um constante reescrever. Vivemos isto com O livro que conta histórias de antigamente (1998), dos Maxakali, do qual muitas narrativas foram reelaboradas e tornaram a sair no Penãhã (2005) e no Hitupmã’ãx (2008).
Outra coisa interessante é que os índios desde sempre são grandes leitores (e possuíam, ainda antes dos brancos, seus sistemas de escrita), por isso seus livros abrem para nós uma nova maneira de encarar a coisa literária, para além da voz narrativa, do sujeito, da ficção. Ao invés da representação, no sentido da metaforização, temos visto um processo de “atuação dos signos”, a performance oral desenhada de algum jeito, eu diria. Isto faz lembrar o princípio oswaldiano/ mallarmaico de que a poesia existe nos fatos, e nas coisas.

Enfim, essa discussão, ainda bem inicial, me parece bem fértil: por que a literatura indígena pode ser vista hoje no Brasil como vanguarda? Talvez porque, através dela, saibamos como não colocar a escrita no lugar da fala (até porque os escritores/tradutores/editores não querem calar seus velhos, nem substituir suas línguas). Porque nos traz de forma cabal o livro como multiplicidade e produz conexões e redes visíveis nas poéticas orais (com os espíritos, por exemplo), mas normalmente desprezadas pela crítica literária mais séria (muitas vezes já fui questionada pela qualidade literária dos textos publicados).


3. Você coordena um núcleo, na UFMG, que pesquisa a escrita e a literatura indígenas. Poderia explicar esse trabalho?

R: Nosso núcleo de pesquisas, o Literaterras, sediado na UFMG, tem sido um espaço de produção literária, na medida em que temos proporcionado a alguns grupos, digamos, extra-ocidentais (índios, negros e psicóticos), os instrumentos para a escrita, a tradução e a edição de seus textos. O núcleo transita por três frentes de dispersão, segundo suas parcerias criativas: etnologia, etnolingüística e psicanálise, dirigidas por mim, Sonia Queiroz e Lúcia Castello Branco, respectivamente. Mas nos reunimos em torno da poética da tradução e da literatura como experiência, e não nos prendemos a nenhuma área institucional.

O meu trabalho como coordenadora consiste principalmente em organizar as equipes, e conseguir os recursos, para que estudantes e pesquisadores índios e não-índios possam desenvolver projetos editoriais. Um dos mais importantes para nós foi o do livro Hitupmã’ãx/Curar, o livro de saúde Maxakali, porque nos permitiu seguir bem de perto os ensinamentos contidos na obra da escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol, que consistem numa espécie de “estética orgânica” (presidida por sua idéia de que não há literatura, importando saber em que real se entra e se há técnica adequada para abrir caminho a outros), através da qual compreendemos um pouco as textualidades indígenas.

São geralmente projetos criados a partir das demandas das comunidades indígenas por material próprio de leitura.
Como disse uma vez o professor Sherê Katukina, os índios não precisam da escola dos “civilizados” para criar sua educação, que eles já têm da melhor, precisam de nossa escola pelas tecnologias que ela traz, como a escrita alfabética. Isto porque, para fazerem valer o direito à terra, sabem que precisam se armar de discursos eficazes e, sobretudo, documentar suas respectivas culturas.

O Literaterras tem se ocupado de buscar formas de promover essa capacitação tecnológica demandada pelas lideranças indígenas, e, em troca, temos aprendido sobre a educação, ou a vida em comunidade. E, como disse, estamos também aprendendo sobre a literatura, para além do seu conceito burguês. Sinto como se tivéssemos entrando numa espécie de pré-história da literatura – o momento mesmo do encontro com a letra. Aí a experiência toma o lugar do conhecimento e nos sentimos todos à deriva. Já editamos cerca de sessenta títulos com os índios, e parece que agora é que estamos nos aproximando da partida...



4. A escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol afirmou, em Onde Vais, Drama-Poesia?, que "reina na natureza uma grande desilusão quanto aos humanos e muitos destes, (...), estão a voltar à natureza". E acrescentou: "eu não iria voltar à natureza, pelo contrário; iria tentar trazer a natureza de volta". Essa escritora, que afirmou que "o sem-apoio apoia-se na falta de apoio" e que "o poema é sem-apoio", é uma referêncvia importante para você. Como poeta ou como teórica da literatura? Poderia falar sobre isso?

R: A Llansol é importante demais para o Literaterras, porque foi em torno do pensamento dela que o grupo pôde se constituir. A importância é que sua obra é uma poética capaz de abrir o caminho para as poéticas ameríndias, na contemporaneidade artística. Nós temos lido seu texto, e o levado aos pesquisadores indígenas que nos acompanham, como uma espécie de método (o da escrita autobiográfica – colocar em grafia própria todo o vivo).

No livro Onde Vais, Drama Poesia?, Llansol nos traz o que ela chama de “boa nova anunciada à natureza”: o terceiro sexo é o da paisagem (a geografia imaterial da espécie terrestre). A idéia de que não nos relacionamos – praticamos a leitura – organicamente só entre nós, humanos, e que somos “vivos no meio dos vivos” me parece muito próxima do “perspectivismo” ameríndio. E só os poetas são capazes de compreender os vagabundos. Com Llansol, penso que só a poesia está em consonância com o pensamento dos índios, porque eles são esses “vagabundos” / nômades que, como os sátiros e as bacantes, “sempre desejaram que se unissem os sexos humanos com o sexo da paisagem”.

5. Sabemos que você conheceu Maria Gabriela Llansol em Portugal. Poderia nos falar sobre ela? Como está a recepção da obra dela no Brasil?

R: Estivemos juntas em dois colóquios promovidos em cooperação do Grupo de Estudos Llansolianos com o Literaterras. Em 2003, foi em um antigo convento na Serra da Arrábida (onde Manoel Oliveira filmou O Convento), fundado por São Pedro de Alcântara no século XVI, com os padres que haviam voltado de uma estadia entre os índios, na costa do então futuro Brasil. Esse primeiro encontro foi muito impactante, porque me senti numa aldeia, aproximando-me de uma grande pajé. O mundo parecia que tinha virado ao contrário.

O segundo colóquio foi em Trás os Montes, num povoado galego bem medieval chamado Mourille. Dois encontros memoráveis, porque ali pudemos estabelecer as bases de um trabalho que, acredito, não é de análise, nem crítica literária, mas do que Llansol chamaria de troca verdadeira com o texto. Com ela, aprendi que não se escreve com o medo e que o amor é a verdadeira chave de leitura. O que mais me impressionou foi a força de sua fala “sem impostura”, em nada diferente de sua escrita. Acho que o texto llansoliano é uma experiência espacial, física (“encontro inesperado do diverso”). Isto eu percebi em presença dela, durante os colóquios.

O terceiro encontro foi em 2007 (ela faleceu em março de 2008), em sua casa em Sintra, por ocasião de sua premiação pela APE (Associação Portuguesa de Escritores). Ela não foi receber pessoalmente o prêmio, mas enviou um texto que viria a ser parte do livro talvez mais impressionante que já li: Os cantores de leitura. Bem, neste último encontro, conversamos sobre a presença dos índios na universidade. E ela me disse que eles eram “os cantores da floresta” e que há os que escrevem sentados e os que escrevem com suas ações, evoluções, e que seu texto se escreveria também com os índios. Lembro-me que saí convicta de que faríamos um livro juntas, que a traria concretamente a uma aldeia indígena. Este livro, não à toa se chama em português Curar e foi orientado através de uma pesquisadora, a Vânia Baeta, que havia feito uma tese llansoliana sobre a pulsão da escrita em Thérèse de Lisieux. Para nós, é como se duas pontas tivessem se conectado (a mística, a via negativa, o pensamento renegado pela razão iluminista e as formas míticas de cura vigentes no mundo indígena).

Quem trouxe de forma definitiva o texto e o espírito llansoliano até nós foi a Lúcia Castello Branco, que é a criadora do Literaterras (este nome devemos a um livro dela com a Ruth Silviano Brandão). A Lúcia, portanto, é a grande disseminadora da obra de Llansol no Brasil e é responsável pela maioria absoluta das pesquisas sobre sua obra, em âmbito acadêmico. Llansol deixou, no entanto, um enorme espólio (sei de cerca de 78 cadernos manuscritos inéditos) que está sendo digitalizado, colocado à disposição (cf. http://espacollansol.blogspot.com/), o que vai gerar um sem fim de novos textos.
Sua obra está sendo cada vez mais traduzida na Europa, mas não há ainda edição brasileira de nenhum livro seu. Por isso também Llansol ainda é um biscoito tão fino aqui.
Acredito que, daqui a alguns anos, será mais reconhecida. Talvez ainda não estejamos prontos para esse texto difícil.

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